quinta-feira, 15 de maio de 2014

Trechos escolhidos do Livro O Poder Erótico


"De todos eu mantive oculto o meu lado mais íntimo. O mesmo fiz em relação aos meus preceptores, também Ebba e Gabriel, e por isso, em última análise, eles não puderam me destruir. Eles podiam me lesar, eles podiam infligir mais e mais sofrimentos, mas eu, já desde criança, havia aprendido a transformar surras em força. E todos batiam em mim sem dó nem piedade, a lista é infinita, e, de suas surras nasceram em mim forças titânicas.
A primeira a me surrar foi a minha mãe. No primeiro olhar que me tocou neste mundo havia apenas decepção e ódio. Minha mãe tinha se esforçado, mas eu era apenas uma filha. Seguiu-se a este primeiro olhar a pancada de minha mãe contra mim; eu tenho um ombro atrofiado.
o ser aceito como aquele que se é. Este é o pior sofrimento que pode se causar a uma criança, é a pior sorte que se impõe a um ser humano. Ser aceito como se é; este desejo, esta agonia foi o espinho que me acompanhou até os 43 anos de idade. 
Até este ponto, eu havia descido todos os níveis de minha vida. Se não era aceita como eu era, então eu não queria fazer parte  de lugar algum, queria ser independente e livre. E eu não permitia empecilhos no meu caminho em direção à vida libertina; empecilhos eram empurrados de lado, com força e também, muitas vezes, com mentiras."


"Agora estou livre. Em um mês eu completarei 29 anos, e não há mais pessoa alguma a quem eu deva alguma obrigação ou precise informar algo - nem pai, nem mãe, nem meu tutor Axel Oxenstierna, nem mesmo minha amada Ebba ou qualquer outro ente querido. Com o meu ato de hoje, eu provei ao mundo que deixo com muita alegria o país e o poder e afasto qualquer conideração humana para poder viver em liberdade. Eu vivo agora  o que meu amigo e filósofo René Descartes tantas vezes disse: viver em liberadade e não precisar obedecer a ninguém é uma felicidade maior do que poder comandar o mundo todo."


Lema de Cristina: Fata Viam Invenient. O Destino encontra meios e caminhos.


"Agora, no momento em que me encontro posso calmamente lançar um olhar retrospectivo sobre muitas coisas: eu nunca quis ser rainha; eu nunca quis ser esposa e mãe, mas, sim, viver como ser livre, e este status eu conquistei para mim. Eu feri muitas pessoas no meu caminho, tratei-as de maneira áspera; isto não pude evitar, pois o meu objetivo não podia ser alcançado de outro modo - ao menos era o que eu acreditava.
Ao mesmo tempo, eu me sinto interiormente como Pythia, a sacerdotisa de Delfos, antes que ela se retirasse do templo, do espaço sagrado do oráculo. Estou triste. Exigi muita liberdade? Ter desejado viver como uma mulher libertina, como cientista em uma sociedade de homens - foi esta uma vontade exagerada?"
Cristina, 1688

"Minha querida amiga Cristina, há alguns dias, na visita que me fez, você disse estar preocupada comigo, pois estou sorrindo mais do que habitualmente. Você também me contou que, em sua Accademia, discute-se há semanas sobre aquilo que mais testemunha a dignidade de uma pessoa: o sorriso ou o choro. Por que se preocupou menos com minhas lágrimas do que com meu sorriso? Você pensou nos filósofos Heráclito e Demócrito. Eu lhe enviarei meus pensamentos sobre os dois pensadores. O que pesa mais, as lágrimas de Heráclito ou o sorriso de Demócrito? As lágrimas nacem nos olhos, o sorriso na boca. Há no mundo muito mais para chorar ou para sorrir? O nosso mundo, composto de um mapa de miséria, perigo, infelicidade e ferimentos, é um grande teatro no qual todo dia e a todo momento acontecem coisas funestas e deploráveis. Para onde dirigimos nosso olhar nos deparamos com a infelicidade. Aquele que não chora parece ser um monstro. E por que, apesar de tudo, eu ainda defendo Demócrito? Como se pode em relação àquele mundo, que Heráclito chora, sorrir como Demócrito? Porque ambos os filósofos choram, cada qual do seu modo. Ordenemos tudo isto: choramos com lágrimas quando há uma dor mediana, choramos sem lágrimas numa grande dor e choramos com um sorriso na dor mais intensa. O mesmo se dá com a luz. Quando há luz mediana, nós enxergamos; contudo, a luz excessiva nos cega. A dor mediana nos faz gritar, a dor intensa nos cala. É por essa razão que digo: Demócrito não sorri, mas chora e soluça à sua maneira sobre a miséria do mundo. Ele sorri ao sair de casa, ele sorri ao conversar. Apenas ao orar, ao sentir a voz de Deus, então as lágrimas correm." 
Padre Antonio Vieira, carta para Cristina, 1675


"Assim  como você, eu também espero pelos primeiros raios de sol mais quentes. Todos os dias trabalho no meu tema e me ocupo com o cálculo da órbita de Vênus. Constantemente fico aturdida com estudos, com deveres que eu mesma assumo. Deste modo, o meu vício pelo saber também aumentou com o passar dos anos, assim como meu desejo de querer controlar tudo com lucidez. Os sentimentos provocam dor, causam medo, e as decepções atormentam. Há ainda algo que eu desejo anotar. Há uma palavra que você utiliza em seus relatório e que me chama a atenção: escravos. Eu creio que índios eram prisioneiros, mas africanos eram escravos. Como rainha eu era prisioneira, como esposa eu teria sido uma escrava. Devíamos discutir sobre isso?"
Cristina, 1674


"Minha missão são os pobres, os miseráveis, os índios, as pessoas da África. Estes prisioneiros vivem pior do que o gado. Pais, mulheres, crianças e velhos - são utilizados, sacrificados, explorados, escondidos, humilhados e maltratados, e todos vivem na indugêngia em total desamparo interior. Eles se agridem em suas estupefação, com sua raiva e dor engolidas a seco. A solidão, o cativeiro transformam as pessoas. Eles precisam do espírito de comunidade, de identificação, precisam de doação. Isto elas recebem de nós, missionários, mas muitas vezes já estão muito fracas e doentes para chegarem  até nossas missões. 
Todas essas atrocidades são geradas por aquelas pessoas denominadas portugueses. Todas estas atrocidades acontecem em nome da cultura portuguesa, da língua portuguesa. É um escândalo!
Nós sabemos que a história não pode ser detida. Em breve os portugueses irão se lastimar, eles irão acusar, eles irão clamar pelo jovem herói Sebastião, que jamais retornou; eles se entregarão à saudade de uma época áurea, há muito vivida, e, tristes, não terão domínio sobre o seu destino, adoecerão no espírito e na alma - e a origem de todo o mal está aqui e agora na colônia portuguesa."
Padre Antonio Vieira, janeiro de 1662


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