São Paulo, 28 de fevereiro de 2015
NOTA DE
ESCLARECIMENTO
A equipe do espetáculo “Dissecar uma Nevasca” vem a público
expressar seu posicionamento quanto ao cancelamento da temporada popular que
seria realizada no Tribunal de Justiça de São Paulo no mês de março de 2015.
Reafirmamos que o motivo do cancelamento foi a recusa da equipe do espetáculo
em cortar cenas e palavras do texto original, em atendimento a exigências
emanadas, segundo representantes do próprio tribunal, da presidência do
referido órgão público.
Como equipe e, acima de tudo, como artistas, sempre nos
colocamos a favor do diálogo. Durante toda a nossa conversa com o Tribunal de
Justiça, sempre deixamos clara nossa intenção e nossa alegria em poder
compartilhar com o público o nosso espetáculo, em um prédio privilegiado pela
arquitetura e pela história.
A justificativa oficial apresentada pelo TJSP para o
cancelamento da temporada, com o aval do presidente do Tribunal da Justiça,
José Roberto Nalini e publicada no jornal Folha de S. Paulo de 28/02/2015,
segundo a qual “os horários de apresentação e a duração da peça eram
incompatíveis com o espaço”, foi expressa pela primeira vez no ofício do TJSP
datado de 26/02/2015, e em nenhum momento antes disso. Portanto, essa
explicação é incorreta com respeito aos fatos.
Durante todo o processo, demos toda a liberdade para que o
tribunal se manifestasse frente às nossas necessidades e as necessidades do
espaço para que o espetáculo acontecesse. Os dias e horários acordados foram
discutidos com a equipe do projeto Arte e Cultura no TJSP. As mesmas variáveis
foram, em seguida, objeto de conversas entre as equipes: do espetáculo, do Arte
e Cultura no TJSP, e com o assessor de José Roberto Nalini, Ricardo Scaff.
Cumpre também abrir um parêntese para ressaltar a
disponibilidade, a cordialidade e a competência da equipe responsável pelo
projeto Arte e Cultura no TJSP.
As negociações iniciadas em outubro de 2014 culminaram nas
datas e horários de 07/03/2015 a 29/03/2015, sábados e domingos ás 16h. Foram,
portanto, determinadas de comum acordo, de modo que tanto a equipe do Arte e
Cultura no TJSP e a equipe da presidência do tribunal estavam cientes.
Reflexão sobre os acontecimentos enviada por email pela diretora Bim de
Verdier no dia 26/02/2015.
Fui solicitada traduzir e encenar um texto dramático sueco
para o público brasileiro. Fazem mais que trinta anos que eu transito entre
Suécia e Brasil, morando alternadamente dos dois lados do Atlântico. Como
diretora me questiono: Quais histórias nos pedem para serem contadas justamente
no tempo e espaço em que vivemos? Quais as questões a serem investigadas?
Teatro é pesquisa, cada espetáculo uma tentativa de compreender o que é viver
como ser humano. Entre os dramaturgos contemporâneos uma voz se destaca: Sara
Stridsberg se expressa de uma forma peculiar e inovadora, numa linguagem densa
e poética, imagens sobrepõem-se a imagens sem explicações obvias. A escolha
estava dada. Sara Stridsberg já escreveu vários romances e três obras
dramáticas. Ela é multiplamente premiada e traduzida para varias línguas. Sua
peça Dissecar uma Nevasca foi escrita a pedido do Teatro Nacional Real Sueco.
Foi encenada nesse mesmo teatro em 2012.
Criamos o espetáculo Dissecar uma Nevasca na base da
confiança. A autora e sua editora Berit Gullberg me deram a confiança de
traduzir e encenar a peça. Eu prometi diretamente a elas em ter o máximo de
cuidado com a personalidade e as peculiaridades do texto, quer dizer ser leal
aos objetivos da autora, não alterar a essência de sua obra e ter sensibilidade
literária, fazendo escolhas em diversos planos estéticos, estilísticos,
semânticos, linguísticos, entre outros. Cada palavra no texto e na tradução é
cuidadosamente escolhida pelo seu significado, seu som, sua nuance, seu ritmo e
pelas imagens que ela cria.
Como diretora, também sou uma intérprete. Uma artista que
interpreta a obra de outra, levando-a adiante, como um corredor de revezamento
que segue a corrida transportando o bastão que recebeu. Junto com os atores e a
equipe continuei o trabalho durante meses, dando forma ao espetáculo, confiando
uns nos outros, no texto da autora e na historia a ser contada. Apoio e
confiança ao nosso trabalho foram também dados pelo SESC, pela Embaixada da
Suécia, Swedish Arts Council, The Swedish Arts Grants Committee, Universidade
Popular de Wik e varias empresas financiadoras.
Nenhuma protagonista de Sara Stridsberg é bem comportada.
Não é sua função. Elas quebram tabus, questionam o poder e o ordinário, como
devem fazer o teatro e as artes em geral. Seus objetivos não são meramente
serem belas, mas ter vida, surpreender, mexer com as emoções e os pensamentos
dos espectadores. Durante as três décadas que trabalhei com teatro nos
continentes sul-americano, europeu e africano adquiri um profundo respeito pelo
público e sua capacidade de receber e abrigar histórias multi-facetadas.
Criamos um espetáculo com simbologia e dramaturgia
complexas, onde as várias camadas e múltiplas repetições de frases, gestos e
palavras possibilitam uma compreensão mais profunda. Com confiança nos seus
espectadores, Dissecar uma Nevasca discute questões existenciais como o que é
liberdade, gênero, opressão e honestidade. Estreamos no Sesc Belenzinho e
fizemos uma temporada lá. Ficamos felizes com a sua recepção pelo público e
pela crítica. Estávamos também alegres com a perspectiva de levar o espetáculo
para uma nova temporada no Salão dos Passos Perdidos do Palácio da Justiça,
onde a entrada franca seria uma maneira de democratizar o acesso ao evento
teatral.
Quando, poucos dias antes da re-estreia prevista, recebemos
a notícia de que esta temporada tinha como condição exigências de cortes de
palavras específicas do texto e extração ou mudanças na cena de transformação,
a peripeteia, ficamos chocados. Fomos informados de que, além de cortes
exigidos para diminuir a duração do espetáculo, não seriam permitidos nem
palavrões, nem nudez. Modificações que neste caso perturbariam seu significado,
sua dramaturgia e seria um total desrespeito a sua autora. Com certeza um
espetáculo pode ser modificado mesmo depois da estreia, mas estas modificações
são feitas pelos artistas com critérios artísticos, jamais podem ser feitas sob
pressão de outros. A importância de um setor cultural autônomo que tenha
liberdade de se expressar deve ser reconhecida e defendida. Estávamos convictos
de que num espaço público e cultural íamos encontrar respeito pelo nosso
trabalho e pela obra de arte que é um espetáculo teatral. Excluir palavras
porque não agradam, ou alterar partes do espetáculo sem compreensão profunda de
sua forma, conteúdo e significado seria uma mutilação, um ato imposto por quem
quer controlar e domesticar a arte.
No espetáculo a personagem principal pergunta: ”Dissecar uma
nevasca, o que significa isso?” e seu filosofo responde: ”Tudo é possível.
Significa que você não precisa aceitar nem a neve que está caindo lá fora. Tem
que dissecar cada ideia e cada nevasca e desmontá-la no pensamento…” O próprio
texto nos leva a perguntas. Será que não cabe dentro do Palácio de Justiça
contar a historia de um personagem que ultrapassa a dicotomia dos gêneros, que
não se define como nem homem, nem mulher? Que afirma o direito de cada um se
definir livremente, que questiona as estruturas e as estratégias do poder?
Seriam os poucos palavrões e uma cena onde a protagonista está sem blusa que
provocaram esse ato de desrespeito ao nosso trabalho e aos artistas e
profissionais envolvidos?
Estamos sempre abertos para dialogar sobre nosso trabalho,
mas aceitar intervenção, não. Como diretora e elenco não temos o direito frente
à autora, aos nossos apoiadores ou às nossas consciências de modificar o
espetáculo a partir dos critérios colocados. Lamento muito as exigências que
nos impossibilitam de oferecer para o público paulista a possibilidade de
assistir Dissecar uma Nevasca no Salão dos Passos Perdidos.
Sinceramente,
Bim de Verdier
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